microbios

Muito tempo antes que a primeira planta ou o primeiro animal surgissem, durante um período de mais de 2 bilhões de anos, os únicos habitantes da Terra foram as bactérias. Não passavam de primitivas células – menos que microscópicas bolhas de gordura, 500 vezes menores que um grão de areia. Mas nesse ínfimo volume se reunia um número incrivelmente grande de substâncias diferentes. Protegidos do meio externo, mais de 1000 tipos de proteínas, ácidos e outras moléculas combinavam-se ordeiramente e permitiam à célula absorver alimentos, crescer e afinal dividir-se em duas, dando origem a um novo ser vivo. Multiplicavam-se rapidamente.

Uma única célula, no curso de uma única noite, podia formar uma família de 4,5 bilhões de indivíduos, quase toda a atual população humana. Assim, depois de algum tempo, as bactérias ocuparam todos os nichos do planeta, nas rochas, na água ou no ar. Formaram uma manta viva que se desdobrou em centenas de milhares de raças diferentes, aprendendo todos os truques químicos necessários à sobrevivência. Até hoje, de fato, não se inventou nada de novo nesse particular. Mesmo o organismo humano, embora incomparavelmente mais complexo, possui uma química semelhante à das bactérias. Esse foi o primeiro indício de que desempenhavam um papel fundamental no desenvolvimento dos outros seres. Agora, alguns cientistas vão mais longe: pensam que elas são a própria vida. “De todos os organismos da Terra, somente as bactérias são indivíduos”, sustenta para espanto dos leigos e desconforto intelectual de muitos de seus pares, a microbiologista americana Lynn Margulis, da Universidade de Massachussets. Para ela, o resto -– nada menos que todas as plantas, animais e o próprio homem, sem exceção– são meras associações de antigas bactérias. Aos 51 anos, autora de sete livros, um dos quais há pouco editado em português, Microcosmos, escrito a quatro mãos com o biólogo Dorion Sagan, filho de seu casamento com o astrônomo e divulgador científico Carl Sagan, Margulis pode não estar inteiramente certa. Mas abala profundamente a velha idéia de que os micróbios são seres inferiores, superados por formas mais avançadas de vida.

Durante milênios o homem não se deu conta da importância dos microorganismos, ou sequer de que existiam. Com efeito, só puderam ser observados depois da invenção do microscópio, no início do século XVIII. E não foram recebidos com festa, pois em 1870 o biólogo francês Louis Pasteur (1822-1895) descobriu que eram a causa invisível da maior parte das doenças mais comuns. Temidos e pejorativamente chamados de germes, só agora começam a receber o respeito que merecem. Em parte, pelo impulso que podem dar à indústria moderna. Nada de surpreendente nisso: sem que tivessem consciência desse fato, desde a época dos faraós, há mais de 5 000 anos, as pessoas já empregavam bactérias e fungos para fazer pães, bebidas alcoólicas, queijos e iogurtes.

Neste século, o primeiro produto industrializado com a ajuda de fungos, na época da Primeira Guerra Mundial, foi o glicerol, um componente de explosivos. Na década seguinte, o inglês Alexander Fleming verificou que o fungo Penicillium notatum excretava toxinas contra as bactérias e podia ser cultivado em massa para a produção de remédios, os antibióticos, como viriam a ser denominados os medicamentos que mais vidas humanas salvaram. A meta atual é achar microorganismos cada vez mais eficientes, eventualmente escondidos em nichos inexplorados, como pântanos, picos gelados, leitos oceânicos, ou mesmo no organismo das plantas e animais superiores.

Ao lado disso, a seleção de estirpes e as mutações induzidas em laboratório contribuem para criar uma prolífica indústria de microoperários altamente capacitados. Alguns já estão em serviço, enquanto muitos outros começam a trabalhar em uma variada gama de funções. Aos poucos, porém, o lado prático das habilidades microbianas começou a dar lugar a um sentimento mais profundo. Está claro, atualmente, que a microvida não existe ao deus-dará, espalhada a esmo pelo mundo. Em cada local, edifica organizadas colônias que contêm não só centenas de cepas bacterianas, mas também muitos outros tipos de seres, como as algas, as amebas e os fungos. Estes últimos, em particular, surgiram na Terra muito depois das pequenas células bacterianas—há 1,5 bilhão de anos—e possuíam um novo tipo de célula, 1 000 vezes mais volumoso. Mas povoaram o planeta em íntima associação com as bactérias, até o aparecimento dos animais e das plantas, apenas 500 milhões de anos atrás.

Em escala mundial, os microorganismos criam uma formidável rede de comunicações químicas regulando toda a vida do planeta, o que fascina a cientista Lynn Margulis. “Estamos convencidos de que a comunidade das bactérias está presente em todos os lugares da Terra”, dizem os microbiologistas canadenses Maurice Panisset e Sorin Sonea. Autores de um livro pioneiro sobre o assunto, A new Bacteriology, ainda não editado no Brasil, eles ensinam que as mais avançadas colônias se encontram nos solos cultivados. Um só grama de chão fervilha com a incessante atividade química de 1 bilhão a 10 bilhões de seres, o que significa que na restrita área de um quarteirão seu peso pode ultrapassar 3 toneladas. No solo brasileiro, foi possível selecionar nove gêneros de bactérias altamente eficientes na tarefa de degradar lixo. Os mais conhecidos são os Pseudomonas e Bacillus já empregados em instalações de tratamento de resíduos no Japão e nos Estados Unidos. Só o Bacillus, no Brasil, reúne 65 cepas diferentes, que digerem a maior parte dos compostos industriais. Deram conta, por exemplo, de nada menos de 167 compostos escolhidos por pesquisadores da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Um número ainda mais impressionante é o das bactérias Rhizobium, capazes de captar nitrogênio diretamente do ar e repassá-lo gratuitamente às plantas. Importante nutriente dos vegetais, o nitrogênio geralmente tem de ser obtido na forma de caros adubos industriais. Em vista disso, se torna cada vez mais importante encontrar bactérias adubadoras, ressalta o engenheiro agrônomo Eli Sidney Lopes, do Instituto Agronômico de Campinas (IAC), em São Paulo. Ao longo dos anos, os pesquisadores do IAC colecionaram 800 estirpes de Rhizobium. “É um trabalho dinâmico, durante o qual as bactérias têm de ser testadas e selecionadas para atuar com eficiência em diversas variedades de plantas”, conta Lopes. Também no interior dos outros organismos existem importantes microcolônias. O número de células bacterianas no corpo humano é dez vezes maior que o de células do próprio organismo. Estima-se que o homem possua 10 quatrilhões de células (o número 1 seguido de dezesseis zeros), junto às quais vivem 100 quatrilhões de bactérias (1 mais dezessete zeros).

Albergadas em maior ou menor proporção em todos os órgãos, com notória preferência pelo intestino, travam com as células hospedeiras significativas conversações em linguagem química. Mesmo as que causam doenças evocam antigas relações de vizinhança: para aderirem à membrana de uma célula e infestá-la, têm de ser reconhecidas e, ainda que a contragosto, aceitas. As bactérias capazes de desencadear moléstias letais não são exatamente um primor de inteligência. Afinal, ao matar seu anfitrião, assinam a própria sentença de morte.
Provavelmente por isso mesmo, as bactérias inofensivas são maioria, lembra o microbiologista Luís Rachid Trabulsi. Atualmente aposentado da Escola Paulista de Medicina, dirigindo uma pequena fábrica de reagentes médicos, Rachid obteve reconhecimento internacional por seus estudos sobre os milhares de cepas bacterianas intestinais, tendo seu nome sido homenageado numa delas, a Koserella trabulsii identificada cinco anos atrás nos Estados Unidos. Há indícios de que os microorganismos ajudam na digestão. Além disso, fabricam vitaminas que possivelmente são absorvidas pelo corpo humano.

A imensa disseminação das bactérias acabou forjando o próprio processo de evolução. Inicialmente diversas bactérias se associaram para gerar os novos microorganismos e estes, em seguida, se coligaram para moldar os seres superiores. A evidência mais marcante desse fenômeno são as mitocôndrias, pequenos órgãos responsáveis pela produção de energia, existentes dentro de todas as células avançadas, das algas ao homem. Embora essenciais à sobrevivência dos organismos nos quais habitam, as mitocôndrias, na verdade, Ihes são estrangeiras. Possuem os seus próprios genes, as moléculas que controlam o funcionamento das células e resguardam suas características hereditárias. Também têm uma membrana própria, parecida com a das bactérias.

A origem das mitocôndrias pode ser o resultado da maior transformação já ocorrida no ecossistema terrestre—a substituição do dióxido de carbono, o principal gás da atmosfera, pelo oxigênio. Foi uma catástrofe. Hoje, todos os organismos superiores, sem exceção, empregam o oxigênio para extrair energia vital, mas até 2 bilhões de anos atrás ele não existia. Apareceu e encheu o ar porque as bactérias, ao decompor a água, o expeliam como resíduo do seu metabolismo. O problema é que o oxigênio é extremamente reativo e tóxico para as células que não sabem usá-lo—inclusive as bactérias primitivas.

Essas só se salvaram porque surgiram estirpes mutantes com dupla personalidade: extraíam energia das reações químicas com metais, como de praxe, mas em certos casos podiam recorrer ao oxigênio, o próprio poluente que haviam criado. A microbiologista Lynn Margulis imagina que um desses seres esquizofrênicos, no passado remoto, invadiu uma bactéria incapaz de respirar oxigênio—e nunca mais saiu. Em troca de proteção e de alimento, transformava o oxigênio em providencial fonte de energia, na aliança mutuamente vantajosa para os sócios que os cientistas denominam simbiose. A vítima original, sugere Margulis, deve ter sido uma grande bactéria, semelhante à moderna Thermoplasma.

Vivendo em águas quentes e ácidas, ela só tolera o oxigênio em pequenas doses. Mas um dia pode ter sido abocanhada por outra bactéria—aparentada, por exemplo, com a moderna Bdellovibrio. Essa voraz predadora invade as vizinhas e as devora por dentro. Como sabe tirar energia do oxigênio, suas ancestrais podem ter se estabelecido no interior de uma ancestral da Thermoplasma. Outro sinal de que as simbioses moldaram a evolução dos seres vivos encontra-se na cauda dos espermatozóides. Nos micróbios assim como nos animais e nas plantas, grande número de células agita compridas caudas desse tipo para se locomover. Chamadas ondulipódios elas têm sempre a mesma estrutura molecular, não importa em que seres são encontradas. E não são usadas apenas como remos.

Todas as células superiores, no momento da reprodução, mudam sua forma interna com a ajuda de uma rede de fibras de estrutura idêntica à dos ondulipódios. Mesmo no cérebro, existem os axônios, longos braços com que as células nervosas se comunicam entre si. Margulis acredita que todos esses filamentos vieram de um mesmo organismo primitivo, cujo representante moderno seria a bactéria Treponema pallidum. Causadora da sífilis, ela pertence ao grupo dos espiroquetas, os mais rápidos microsseres conhecidos. Ainda hoje os espiroquetas retêm o hábito de aliar-se a outras células para Ihes dar mobilidade. Aparecem, de modo marcante, na ameba Mixotricha paradoxa, à qual aderem em legiões de meio milhão de indivíduos.
É uma situação curiosa, já que a própria Mixotricha é parte de outro ser, o cupim. Sem aquela, este morreria de fome—pois só se alimenta de madeira e não sabe degradá-la. Assim, a ameba se encarrega da digestão em troca de abrigo e de alimento no intestino do inseto. Naturalmente, as simbioses bem sucedidas devem ter sido raras na história da vida. Existem evidências, porém, de que os microorganismos estão o tempo todo empenhados em criar novos arranjos. Com muita sorte, o pesquisador Kwang Jeon, da Universidade do Texas, nos Estados Unidos, acabou flagrando um deles em seu próprio laboratório. Isso ocorreu por puro acaso com uma colônia de amebas cujo desenvolvimento Jeon procurava acompanhar.

Infestada de bactérias, a colônia adoeceu; em conseqüência, as amebas tornaram-se hipersensíveis ao calor e ao frio, deixaram de se alimentar e se reproduziam muito raramente, a intervalos de até um mês, em vez dos dois dias de praxe. Mas nem todas morreram e as sobreviventes foram cuidadosamente selecionadas pelo pesquisador, intrigado com o desfecho do drama. Após cinco anos, as amebas aprenderam a conviver com as bactérias, em número de até 40 000 no interior de sua célula. O novo híbrido não só era saudável como também de tal forma solidário, que, quando as bactérias eram mortas, as amebas também morriam.

Depois das associações bacterianas, vieram as simbioses que conduziram aos animais e às plantas, dotados de inumeráveis células. É certo que diversas algas e fungos possuem mais de uma célula, mas a associação é frouxa: pode ser desfeita a qualquer momento sem prejuízo dos seus membros, que continuam a viver, solitários. Nas plantas e nos animais em vez disso, as células já não são organismos independentes: dividem entre si diversas tarefas vitais para formar um organismo maior. Abandonadas à própria sorte, deixam de viver. As plantas podem ter sido resultado de uma sólida associação das algas com os fungos.

Esses últimos vivem em grandes colônias nas raízes de quase todas as plantas que se conhecem, em que são essenciais. Captam nutrientes minerais do solo e garantem a refeição das suas hospedeiras. Os animais, por sua vez, teriam sido formados por grupos de amebas. O mais primitivo ser conhecido do reino animal, o Trichoplax, mal se diferencia desses seres unicelulares. É uma lesma quase transparente, visível a olho nu, às vezes encontrada nos aquário domésticos reunido um número relativamente pequeno de células. Embora muito parecidas com as da ameba, nem todas elas podem se reproduzir apenas algumas de especializaram nessa função dentro do novo organismo.

Mais que um detalhe, essa é a principal distinção entre o Trichoplax e as amebas individuais. Lynn Margulis e outros pesquisadores têm se esforçado para demonstrar que nada disso é mero acidente. Ela estima que, até hoje, 99,99% de todas as espécies que floresceram na Terra acabam extintas. Mas a manta planetária, com o seu exército celular, perdura há 3,5 bilhões de anos. Silenciosa e invisível, ela prossegue na troca constante de informações químicas e genéticas que moldam a vida e Ihe asseguram continuidade. Diante disso, não é difícil—embora pouco lisonjeiro, para quem se julga o rei da criação—imaginar que o homem e todos os outros animais sejam apenas um instante na prodigiosa aventura iniciada pelas bactérias.

Fonte: Revista Superinteressante – Outubro – 1990

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